absurd corpus: traits of identity by pedro arrifano
written by pedro m. arrifano for ‘the end and the rapture’ exhibition, october 2014
[original version of the text, in portuguese, below]
It is necessary that, with my body, the associated bodies,
the “others,” awaken – those who are not my peers,
as zoology would say, but who besiege me, whom I besiege,
with whom I besiege a single current, present Being,
as no animal has ever besieged those of its species, its territory,
or its environment. [1]
Miguel Bonneville, known for his expressive diversity, whether in the performing arts or in drawing, music, and photography, is one of the leading figures in a new generation of Portuguese artists. “O fim e o rapto (e outras histórias)” was the title the artist chose for his exhibition at the MUTE space.
If “o fim” (the end) is synonymous with completion, limit, and boundary, “o rapto” (the rapture) points us to the act or effect of seizing, of stealing a person by violence or seduction. Bonneville aims to violently seduce any and all boundaries of consciousness, kidnapping us into his very own world. A world where reality and myth intersect and constitute many of the “other stories” he wishes to announce. The association of “thought and body” is one of the main points of this exhibition. (His) Body is the dominant figure, but not the body of his personal history. (His) Body forces thought to think. Absurd of absurdities, we have become accustomed to accepting as truth that thought always functions of its own accord, but the artist reverses the function of thought, forcing it to think through multiple attitudes and postures of (his) body – insomnia, anger, sadness. All lines of errancy – abstract and challenging – are, in the artist’s work, intensive becomings that sometimes merge with the bodies of animals to surpass the empirical and form a virtual-real plane close to what José Gil defines as real experience. The emotions the artist reveals are “minimal differences, the chaos that boils microscopically beneath the large visible units of sentences and gestures; it is the ‘I don’t know what’ that is expressed through or between the macroscopic figures” [2]. Based on his presence/image in the canvas he exhibited at Mute, we can be transported to the myth of young Narcissus. Narcissus, the flower of the same name into which the man transmuted, which lulled beings into their final sleep and exhausted itself in its own contemplation (material narcissism). Is this self-contemplation the revelation of a restless soul? An attempt to express his “self” authentically [3]?
By divesting himself of the human itself and of his personal history, he dispenses with consciousness and paradoxically reaches significance, the dehumanized unconscious, “after all, visual arts are not made to comfort reason. And accepting this paradox greatly helps to appreciate the art of our time” [4]. It is in this confrontation with himself that the other fundamental point of this exhibition is announced: transition. Bonneville, by tearing apart his personality, his identity, his past, the stratified and rigid moral/social schemes, ends up creating the necessary conditions to produce his art. (His) Body transitions into a set of powers/experiences of life, and art manifests itself in a continuous restart of life experiments. Physical, psychic, and ontological restart: “A subtle alchemy of signs then imposes itself (…) which is immediately experienced as a psychic metamorphosis of the speaking being between the two edges of nonsense and sense, of Satan and God, of the Fall and Resurrection” [5]. It is precisely in this restart/resurrection that we find the differences/intensities in Bonneville’s work and (his) exalted body that depersonalizes itself in order to express only affections. There are definitely no absolute beginnings and restarts…
[1] PONTY, M. “O Olho e o Espírito”. 6th Edition, Lisbon: Vega Passagens, 2006, p. 276.
[2] GIL, J., “O Imperceptível Devir da Imanência”. Lisbon: Relógio D’água, 2008, p. 64.
[3] One of the main supports of art in the first decade of the 20th century had been the concept of “expression,” which took on a variety of forms, but all it needed was a notion of the artist’s “self.” In turn, this “self” had to possess the attributes of authenticity. HARRISON, Charles and WOOD, Paul. “Art in Theory 1900-2000: An Anthology of Changing Ideas,” Blackwell Publishers Inc., 1999, p. 125.
[4] MILLET, C., “Arte Contemporânea.” Lisbon: Instituto Piaget, 2000, p. 117.
[5] KRISTEVA, J., “Sol Negro: Depressão e Melancolia”. 2nd Edition, Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p.98.
corpus absurdos: rasgos de identidade
escrito por pedro m. arrifano para a exposição ‘o fim e o rapto’, outubro 2014
É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos
associados, os “outros”, que não são meus congéneres,
como diz a zoologia, mas que me assediam, que eu assedio,
com quem eu assedio um só Ser atual, presente, como
jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou
seu meio[1]
Miguel Bonneville, conhecido pela sua diversidade expressiva, seja ao nível das artes performativas seja no desenho, na música e na fotografia, é um dos principais nomes de uma nova geração de artistas portugueses. O fim e o rapto (e outras histórias) foi o título que o artista definiu para a sua exposição no espaço da MUTE.
Se o fim tem como sinónimo o acabamento, o limite, a fronteira, já o rapto aponta-nos para o acto ou o efeito de arrebatar, de roubar uma pessoa por violência ou sedução. Bonneville pretende violentar sedutoramente toda e qualquer fronteira da consciência, raptando-nos para o seu mundo muito próprio. Um mundo onde a realidade e o mito se cruzam e se constituem em muitas das “outras histórias” que nos quer anunciar. A associação “pensamento e corpo” é um dos pontos principais desta exposição. O (seu) corpo é figura dominante, mas não o corpo da sua história pessoal. O (seu) corpo força o pensamento a pensar. Absurdo dos absurdos, habituámo-nos a aceitar como verdade que o pensamento funciona sempre por sua boa vontade, mas o artista inverte a função do pensamento, forçando-o a pensar através de múltiplas atitudes e posturas do (seu) corpo – insónias, raivas, tristezas. Todas as linhas de errância – abstratas e difíceis – são, no trabalho do artista, devires intensivos que algumas vezes se fundem com o corpo de animais para assim ultrapassarem o empírico e formarem um plano virtual-real próximo daquilo que José Gil define como experiência real. As emoções que o artista revela são “diferenças mínimas, o caos que fervilha microscopicamente sob as grandes unidades vísiveis das frases e dos gestos; é o «não sei quê» que se exprime através ou por entre as figuras macroscópicas” [2]. Tomando como base a sua presença/imagem nas telas que expos na Mute, podemos ser transportados para o mito do jovem Narciso. O narciso, flor do mesmo nome em que se transmutou o homem, que adormecia os seres no seu último sono e que se esgotava na sua própria contemplação (narcisismo material). Será esta autocontemplação a revelação de uma alma inquieta? Uma tentativa de expressar o seu “eu” de forma autêntica[3]?
Ao desapossar-se do humano em si e da sua história pessoal, desfaz-se da consciência e atinge paradoxalmente a significância, o inconsciente desumanizado, “afinal de contas, as artes visuais não são feitas para confortar a razão. E aceitar este paradoxo, ajuda grandemente a apreciar a arte da nossa época”[4]. É neste confronto consigo próprio que se faz anunciar o outro ponto fundamental desta exposição: a transição. Bonneville, ao rasgar a sua personalidade, a sua identidade, o seu passado, os esquemas morais/sociais estratificados e rígidos, acaba por criar as condições necessárias para produzir a sua arte. O (seu) corpo transita para um conjunto de potências/experiências da vida e a arte manifesta-se num permanente recomeço de experimentações de vida. Recomeço físico, psíquico e ontológico: “Uma subtil alquimia dos signos então se impõe (…) que é imediatamente vivida como uma metamorfose psíquica do ser falante entre as duas bordas do não-sentido e do sentido, de Satã e de Deus, da Queda e da Ressurreição”[5]. É precisamente neste recomeço/ressurreição que encontramos as diferenças/as intensidades na obra de Bonneville e o (seu) corpo exaltado que se despersonaliza para poder expressar somente afectos. Definitivamente não existem começos e recomeços absolutos…
[1] PONTY, M. O olho e o espírito. 6º Edição, Lisboa: Vega Passagens, 2006, p. 276.
[2] GIL, J., O imperceptivel Devir da imanência. Lisboa: Relógio D´àgua, 2008, p. 64.
[3] Um dos principais suportes da arte da primeira década do seculo XX tinha sido o conceito de “expressão” que veio a assumir uma variedade de formas, mas a única coisa que ele precisava era de uma noção de “eu” do artista. Por sua vez, este “eu” tinha que ter os atributos de autenticidade. HARRISON, Charles and WOOD, Paul. Art in Theory 1900-2000: An Anthology of Changing Ideas, Blackwell publishers inc. 1999, p. 125.
[4] MILLET, C., Arte Contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 117.
[5] KRISTEVA, J., Sol Negro: Depressão e melancolia. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p.98.