There’s no explanation for Miguel Bonneville’s performance
written by gonçalo frota for the portuguese newspaper público, may 15th 2019
[original version of the text, in portuguese, below]

Increasingly burdened by the surplus of discourse surrounding artistic creations, Miguel Bonneville presents ‘The importance of being Georges Bataille’ at São Luiz in Lisbon, running until May 19th.

Miguel Bonneville’s first conscious encounter with Georges Bataille likely occurred while watching Jean-Luc Godard’s film ‘Week­End’ with a friend. Before that, he may have encountered an essay by Marguerite Duras, a writer he confesses to being obsessed with, about the French author. However, it was only under the influence of Godard, and upon realizing the partial inspiration of the director’s work in the eroticism of ‘Story of the Eye,’ that curiosity led him to seek out some of Bataille’s books. Some time later, while Christophe Honoré’s film ‘Ma Mère’ (starring Isabelle Huppert, based on Bataille’s namesake novel) was in theaters, Bonneville delved back into his work and attempted, for the first time, to artistically engage with it. Inspired by Bataille and David Cronenberg’s ‘Crash,’ he attended several screenings of the film as a form of ‘auto-performance.’ He collected props and headed to the cinema, ‘with no particular purpose, just as an experiment,’ embodying any character resembling those ‘semi-destroyed figures, seeking something out of the ordinary and the everyday,’ he recalls in conversation with PÚBLICO.

Meanwhile, in 2013, Miguel Bonneville began a series titled ‘The importance of being,’ in which, based on the works of authors who have thought—or are still thinking—about their time, the artist questioned his own place in this time and space. After António de Macedo, Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís, and Paul B. Preciado, it is now time to let himself be contaminated by the work of Georges Bataille and understand what results from this encounter: thus, ‘The importance of being Georges Bataille’ takes the stage at Sala Mário Viegas, Teatro São Luiz, Lisbon, from May 14th to 19th.

In the second performance built around Preciado, ‘Arquipélago’ (2017), Miguel found himself ‘a little angry’ with his artistic object of study, as if he were already in the post-breakup phase, after an intense moment of infatuation. Bataille then began to emerge as an escape, a departure from that relationship on its way to burial. ‘Especially because he [Bataille] touches on everything that interests me, and in a very poetic manner,’ he reflects now. ‘He uses philosophy to create a philosophy that is neither systematic nor academic, he connects to Buddhism, yoga, and mysticism. He takes what serves him for a personal search for transgression and to go beyond the ordinary, the banal, what surrounds us.’

In the darkness of the caves

In an initial approach to Bataille’s universe during a three-month residency in France, Miguel Bonneville ended up creating not a performance, but a book. ‘Dissection of a swan’ results from a process in which Miguel began writing a script for a film. ‘At a certain point, I realized that the script wasn’t enough or that I couldn’t even see myself in the role of someone who was writing that script,’ he says. ‘So I made up a director who could write and direct that film and continued writing the script. Then, to better understand who that director was, I invented a critic who wrote about the director—who was, of course, obsessed with Bataille. And it ended up being a constant construction of fictions within fictions in order to try to understand in which direction I wanted to go.’

Perhaps because he spent so many words writing ‘Dissection of a swan,’ when it came time to gather the group of performers (Afonso Santos, Vanda Cerejo, Catarina Feijão, and Francisco Rolo) with whom he created ‘The importance of being Georges Bataille,’ Miguel Bonneville brought from that past experience only ‘the idea of entering an unknown place, a not very controlled place, where there is always some kind of sexual tension or death—although never explicit.’ And it is precisely the refusal of rationality that stands out in a performance entirely set in the dark, starring beings dressed in black against a black backdrop—adorned by a strange inflated black figure—in a systematic refusal of any explanation. ‘Nowadays everything is overly explained,’ Bonneville complains. ‘We go to an exhibition and we have the whole story of the artwork explained to us—who made it, why, in what period, where—we’re not allowed to enjoy it, we always have to deal with a lot of information before and after, say whether we liked it or not, and I think that that takes away the power of the artworks. It doesn’t allow us to see them without a kind of schoolish filter.’

In fleeing from that persistent clarification that obscures more than it clarifies, Miguel Bonneville also followed clues from primitivism and cave art, visiting the prehistoric caves of Cantabria, in an attempt to ‘enter the night, go in search of the shadow.’ Fragments that emerge in the obsessive and primal movements that sometimes take over ‘The importance of being Georges Bataille,’ a piece in which Bonneville unequivocally privileges mystery, the unknown, what lacks decoding. Without wanting to give moral lessons, he only claims the abstraction he finds in music and the search for ‘the corners where freedom still hides.’ Even if it has a threatening face. After all, that’s almost always the face of the unknown.


Não há explicação para a peça de Miguel Bonneville
escrito por gonçalo frota para o jornal público, 15 de maio de 2019

Cada vez mais saturado do excesso de discurso de que se rodeiam as criações artísticas, Miguel Bonneville apresenta no São Luiz, Lisboa, até 19 de Maio, A Importância de Ser Georges Bataille.

O primeiro contacto consciente de Miguel Bonneville com Georges Bataille terá acontecido enquanto via, com uma amiga actriz, o filme Week­End, de Jean-Luc Godard. Antes disso, ter-se-á provavelmente cruzado com um ensaio de Marguerite Duras, escritora pela qual se confessa obcecado, acerca do autor francês. Mas só sob o efeito de Godard, e percebendo a inspiração parcial do realizador no erotismo de História do Olho, é que a curiosidade o levou a procurar alguns dos seus livros. Algum tempo depois, enquanto se encontrava em cartaz o filme Minha Mãe (que Christophe Honoré rodou com Isabelle Huppert, a partir do romance homónimo de Bataille), Bonneville voltou a mergulhar na sua obra e tentou, pela primeira vez, relacionar-se artisticamente com ela. Inspirado por Bataille e por Crash, de David Cronenberg, assistiu a várias sessões do filme em registo de “auto-performance”. Recolhia adereços e dirigia-se ao cinema, “sempre propósito nenhum, só como experiência”, encarnando uma qualquer personagem que se aproximava daquelas “figuras meio destruídas, à procura de qualquer coisa fora do comum e do quotidiano”, recorda em conversa com o PÚBLICO.

Entretanto, em 2013, Miguel Bonneville iniciou uma série intitulada A importância de ser, na qual, a partir da obra de autores que pensaram – ou pensam ainda – sobre o seu tempo, o artista ia questionando o seu próprio lugar neste tempo e neste espaço. Depois de António de Macedo, Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís e Paul B. Preciado, é agora a vez de se deixar contaminar pela obra de Georges Bataille e perceber o que resulta desse encontro: eis A importância de ser Georges Bataille, em cena na Sala Mário Viegas, do Teatro São Luiz, Lisboa, entre 14 e 19 de Maio.

No segundo espectáculo construído em torno de Preciado, Arquipélago (2017), Miguel dava por si “um bocadinho zangado” com o seu objecto de estudo  artístico, como se estivesse já na fase pós- ruptura amorosa, depois de um intenso momento de enamoramento. Bataille começou então a surgir como um escape, uma fuga daquela relação a caminho do enterro. “Até porque ele [Bataille] toca em tudo o que me interessa e de uma forma muito poética”, reflecte agora. “Ele pega na filosofia para fazer uma filosofia que não é sistemática nem académica, liga-se ao budismo, ao ioga, a uma espécie de misticismo. Vai buscar aquilo que lhe serve para uma busca pessoal de transgressão e para ir além do comum, do banal, daquilo que nos rodeia.”

Na penumbra das grutas

Num primeiro momento de aproximação ao universo de Bataille, durante uma residência de três meses em França, Miguel Bonneville acabou por criar não um espectáculo, mas um livro. Dissecação de um cisne resulta de um processo em que Miguel começou a escrever um guião para um filme. “A certa altura percebi que aquilo não era suficiente ou nem sequer me via no papel de alguém que estava a criar aquele guião”, conta. “Então inventei um realizador que pudesse realizar esse filme e continuei a escrever o guião. Depois, para se perceber melhor quem era o realizador, inventei um crítico que escreveu sobre o realizador – que era, claro, obcecado pelo Bataille. E foi uma construção constante de ficções para tentar perceber onde queria chegar.”

Talvez por ter gastado tantas palavras a escrever Dissecação de Um Cisne, quando chegou a altura de reunir o grupo de intérpretes (Afonso Santos, Vanda Cerejo, Catarina Feijão e Francisco Rolo) com quem criou A importância de ser Georges Bataille, Miguel Bonneville transportou dessa experiência passada apenas “a ideia de entrar num lugar desconhecido, num sítio não muito controlado, em que há sempre alguma coisa de tensão sexual ou de morte – de forma nunca explícita”. E é precisamente a recusa de racionalidade que sobressai numa peça toda ela passada na penumbra, protagonizada por seres vestidos de preto sobre um cenário preto – adornado por uma estranha figura inflada preta –, numa recusa sistemática de qualquer explicação. “Hoje em dia é tudo demasiado explicado”, queixa-se Bonneville. “Vamos ver uma exposição e temos a história toda da obra – quem fez, porquê, em que época, onde –, não nos permitem desfrutar dela, temos de ter sempre muita informação antes e depois, dizermos se gostámos ou não, e acho que isso retira a força das obras. Não nos permite vê-las sem esta coisa meio escolar.”

Em fuga dessa clarificação persistente que ofusca mais do que esclarece, Miguel Bonneville seguiu ainda pistas do primitivismo e da arte rupestre, visitando as grutas pré-históricas da Cantábria, na tentativa de “entrar na noite, ir à procura da sombra”. Fragmentos que emergem nos movimentos obsessivos e primários que, por vezes, tomam conta de A importância de ser Georges Bataille, uma peça em que Bonneville privilegia, de forma inequívoca, o mistério, o desconhecido, aquilo que carece de descodificação. Sem querer dar lições de moral, reivindica apenas a abstracção que encontra na música e a procura pelos “recantos onde ainda se esconde” a liberdade. Mesmo que tenha uma cara ameaçadora. Afinal, é quase sempre essa a cara do desconhecido.