We are not born artists, we become artists
written by maria joão guardão for the portuguese newspaper diário de notícias, january 14th, 2015
[original version of the text, in portuguese, below]

Miguel Bonneville navigates the complex journey of identity construction through the thoughts and works of Beauvoir.

There’s a naked body with long black hair dancing as if wearing high heels. Then everything dissolves, the body gets dressed, we notice a mirror, a couch, backstage space, a trial-and-error arena that sometimes rhymes, sometimes not, with the set unfolding at the stage’s edge, marking the place where the various experimented scenes are revealed. The importance of being Simone de Beauvoir is this exercise of construction, destruction, and systematic reconstruction that we can call creative work but also identity or, basically, life.

“I wanted the performance to resemble a workday. I wanted it to follow the act of thinking, to reinforce the value of the creative process, the research, and the denial of a conclusion. I wanted to counter the idea of a finished artwork.” Miguel Bonneville decided to pay homage to Beauvoir in a performance where “the body is the word, and the stage is the blank page,” sometimes summoning characters from the author of The Second Sex, She Came to Stay, or The Blood of Others. A free thinker, feminist, existentialist, the French writer marks the second moment of the series of works The importance of being that Bonneville conceives based on the work and life of artists with “vital relevance” in his creative journey. It opened with filmmaker António de Macedo and will continue with Agustina Bessa-Luís – “a true punk and extraordinary writer, politically ambiguous, who is allowing me to reflect on what is happening in Portugal.”

In Beauvoir, he discovered an intense soul mate, with a comprehensive work around issues such as autobiography, politics and feminism, gender and sexuality, existentialism, and death, all fundamental to the artist. And an attraction to the abyss that in both is called the past – “the past wouldn’t let me go: I had longed for it so much and for so long to take it entirely with me into the future,” Simone writes in her Memoirs of a Dutiful Daughter.

Bonneville was born in Porto in 1985, has a background in performing and visual arts, and has been presenting his work on stage and in galleries since 2003. He is an artist whose work is averse to any categorization and who identifies with the complexity of the total work of Sartre’s companion. “It’s impossible to classify her,” he says. A multiple artist, he is an author and character (see the series Miguel Bonneville #1 to #9), multiplying in heteronyms – MB, Loira, BlackBambi – who assume one or several of his facets and express themselves on stage, in photography, in music, in drawings, video, and artist books. “I think of them as personas that sometimes take on a life of their own, other times they sleep. They form a kind of family constellation that was necessary for me to understand what was happening to and around me.” This multiple existence has been fading in his latest works, as if these personas were converging into one. And the series The importance of being is a tremendous step in that direction, as if the autobiographical discourse that has always been at the core of his work here gave way to those who have always exerted a fundamental influence on the construction of the artist himself: “These figures of art, cinema, and literature have always been there, but their importance in the work’s discourse was not evident. Now maybe my autobiographical discourse is hiding behind these figures. I don’t know.”

This search for identity that has always been one of the cornerstones of Bonneville’s work is, like The importance of being Simone de Beauvoir, a matter of construction, destruction, an eternal path towards ourselves that occurs in life as in art. “We are not born artists; we become artists,” Bonneville responds to the famous axiom of the French thinker: “on ne naît pas femme, on devient femme” (one is not born a woman; one becomes a woman).


Não se nasce artista, tornamo-nos artista
escrito por maria joão guardão para o diário de notícias, 14 janeiro 2015

Miguel Bonneville percorre o caminho complexo da construção da identidade a partir do pensamento e obra de Beauvoir.

Há um corpo nu de longos cabelos negros que dança como se tivesse saltos altos nos pés. Depois tudo se desfaz, o corpo veste-se, percebemos um espelho, um divã, espaço de bastidores, de tentativa e erro que umas vezes rima, outras não, com o cenário desenrolado à boca de cena, a marcar o lugar onde os vários quadros experimentados se vão dando a ver. A importância de ser Simone de Beauvoir é este exercício de construção, destruição e reconstrução sistemática a que podemos chamar trabalho criativo mas também identidade ou, basicamente, vida.

“Queria que a peça fosse como um dia de trabalho. Queria que acompanhasse o acto de pensar, que reforçasse o valor do processo de criação, a procura e a negação de uma conclusão. Queria contrariar a ideia da obra feita.” Miguel Bonneville decidiu homenagear Beauvoir numa performance em que “o corpo é a palavra e o palco é a folha em branco”, convocando por vezes personagens da autora de O Segundo Sexo, A Convidada ou O Sangue dos Outros. Livre pensadora, feminista, existencialista, a escritora francesa marca o segundo momento da série de trabalhos A importância de ser que Bonneville concebe a partir da obra e da vida de artistas com “relevância vital” no seu percurso criativo. Abriu com o cineasta António de Macedo, há de continuar com Agustina Bessa-Luís – “uma verdadeira punk e escritora extraordinária, politicamente ambígua, que me permite reflectir sobre o que se passa em Portugal”.

Em Beauvoir, descobriu uma intensa alma gémea, com uma obra total em volta de questões como a autobiografia, a política e o feminismo, o género e a sexualidade, o existencialismo e a morte, todas fundamentais para o artista. E uma atracção pelo abismo que num e noutro se chama passado – “o passado não me largava: desejara tanto e há tanto tempo levá-lo por inteiro comigo para o futuro”, escreve Simone nas suas Memórias de uma menina bem comportada.

Bonneville nasceu no Porto em 1985, tem formação em artes performativas e artes visuais e apresenta o seu trabalho em palco e galerias desde 2003. É um artista cujo trabalho é avesso a qualquer catalogação e que se revê na complexidade da obra total da companheira de Sartre. “É impossível classifica-la”, diz. Criador múltiplo, é autor e personagem (vide a série Miguel Bonneville #1 a #9), multiplicando-se em heterónimos – MB, Loira, BlackBambi – que assumem um ou várias das suas facetas e se exprimem em palco, em fotografia, em música, em desenhos, vídeo e em livros de artista. “Penso nelas como personas que algumas vezes assumem existência própria, outras adormecem. Uma espécie de constelação familiar que foi necessária para eu perceber o que se passava comigo e à minha volta.” Essa existência múltipla foi-se diluindo nos últimos trabalhos, como se essas personas fossem confluindo numa só. E a série A importância de ser é um passo tremendo nesse caminho, como se o discurso autobiográfico que sempre esteve na base dos seus trabalhos cedesse aqui a palavra àqueles que exerceram sempre uma influência fundamental na construção do próprio criador: “Estas figuras da arte, do cinema e da literatura sempre estiveram lá, mas a sua importância no discurso do trabalho não era evidente. Agora talvez seja esse meu discurso autobiográfico que se esconde atrás dessas figuras. Não sei.”

Essa procura da identidade que sempre foi um dos alicerces da obra de Bonneville é, como A importância de ser Simone de Beauvoir, uma questão de construção, destruição, eterno caminho em direcção a nós próprios que ocorre na vida como na arte. “Não se nasce artista, tornamo-nos artista”, responde Bonneville ao axioma célebre da pensadora francesa: “on ne naît pas femme, on devient femme” (não se nasce mulher, tornamo-nos mulher).